quarta-feira, novembro 05, 2003

Incompletidão natural...

Era noite. Como todas as outras noites olhava para a mesma parede branca com um pequeno quadro ao meio, quadro esse de moldura tão pequena quanto torta. Mas apenas nestes momentos! Em que as lágrimas são maiores que os globos oculares e me impedem de ver a moldura como ela realmente é.
Como todas as outras noites o som era aterrador. Buscava dentro de mim a explicação. O que poderia eu saber? Com 18 anos sentia-me tão ignorante quanto há vários anos. De facto, desde que me lembro de me lembrar do que quer que seja.
Lá fora os berros eram os mesmos de sempre. Isolava-me no meu castelo... de papel, pois este não conseguia evitar o inimigo nem por terra nem por ar, sendo incapaz perante os estridentes gritos projectados directamente do sítio de onde eles não deviam vir, em direcção à minha cabeça.
Mais uma vez a minha mãe entrava neste estado de semi-loucura que cá por casa todos nós nos habituámos a tratar por ?neura?.
Como sempre esta discutia por motivo nenhum. Por pura insatisfação própria talvez. Seja como for, éramos nós quem sofríamos e ela quem desesperava por uma solução que esperava vir atrás de cada berro, de cada lamento, enfim... Que mais não eram que isso. Em suma: mimo, casamento infeliz, divórcio, pais falecidos e dois filhos para criar.
A cobaia dela hoje foi o Leonardo, meu único irmão, de 22 anos, semi-casado e semi-viúvo. Mas para ele aqueles gritos eram nada perante o facto de a noiva que com ele se preparava casar na semana que agora se segue ter sofrido um acidente de automóvel há dias e, agora, semi-jaz em coma no hospital de Leiria, que, tendo em conta o seu nível de atendimento, mais parece uma casa mortuária, ou semi-mortuária... e que espero não faça agora uso da malfama que a metonímiza.
Saí de casa. Não me interessa a hora.
A minha relação com a Drica, como todos lhe chamamos, nunca foi muito próxima. Se fosse acho que já a teria visitado. Custa-me também a dor física dos outros. Daí ainda não lá ter ido ainda. A dor psicológica parece-me banal. Depois de anos a suportá-la finalmente fui compreendendo que esta não desaparece, segue em nós em todos os momentos. Aprendi a conviver com ela e hoje somos quase parentes. Daí não me faça impressão a dor dos pais da Drica, nem sequer a dor do meu irmão. Sinto-me simplesmente um estrangeiro perante o choro. Não na língua, que a linguagem do choro ficou, juntamente com poucas outras coisas, para lá do desabamento da torre de Babel. Sinto-me assim na atitude, no desprezo pela dor que mais não parece que um ritual sem força para entrar na minha redoma de papel.
A culpa do acidente não foi do outro. Foi mesmo da mãe da Drica, uma vez que a Drica conduz mal e nisto sai, sem dúvida, à mãe. Segundo o que o 'outro' conta, ela apareceu vinda de lado nenhum e acertou-lhe de lado só o percebendo ele quando reparou que o carro estava já voltado, pronto para ir de volta para o sítio de onde nunca deveria ter vindo. Mais pormenores só quando ela voltar do pesasonho; remediável, esperemos nós.
Mesmo tendo já passado a casa da Maria das Cebolas, a voz da minha mãe continua perfeitamente audível. À minha volta as pessoas fingem ser mais surdas do que eu finjo ser. Mudas concerteza não serão quando a minha frente se metamorfosear na minhas costas, por artes mágicas que só quem tem pernas para andar, e vergonha para pensar, consegue compreender.
Trago na mão o manual de como domesticar o seu cão. Procurei o outro relativo às mães. Não encontrei. Contentei-me com este. Apesar de já muito dobrado ainda não o li. As imagens parecem-me aborrecidas. Imagino que as letras aí riscadas em séries capitalistas de maços de 16 páginas não sejam melhores. Nem quero saber. Às vezes quero. Não sei...
Tendo chegado ao hospital tudo era como previra. A mãe da Drica joga-se a mim a chorar, como que para compensar a falta que a cama lhe fez durante a noite, não fosse a vizinha dizer alguma coisa; e a falta de lenço, sabe-se lá porquê. Talvez a minha camisa lhe tenha parecido mais adequada.
Em silêncio olhei em volta. Tectos brancos, lençóis brancos... tudo embutido na pálida cara da semi-noiva, que pelo aspecto não dava bem a ver se as paredes e os lençóis chegaram antes dela, se depois, isto porque a mãe da Drica é daquelas que gosta de ver tudo a condizer.
Não fiz perguntas. Sei que não sabiam mais do que eu.
-Adeus.
Saí.
Fugira do barulho em casa. Mas este silêncio era bem pior. Este nunca fizera parte do meu mundo. Para mais, era um silêncio novo, desconhecido. Não doentio. Simplesmente desolado. Ao que eu não estava acostumado.
Não soubesse eu que o meu irmão estava a discutir – discutir, como quem diz... pois este só ouve, pouco fala - e ter-me-ia admirado de o não ter visto ali dando as mãos esperançadas à semi-noiva e repetido pela milésima vez à semi-sogra, como tudo isto era inacreditável, como poderia tudo isto ter acontecido logo agora e como o 'outro' deveria estar a esconder alguma coisa.
Testemunhas só mesmo a inconsciência de dois, pois mais ali não haviam, e estas não contam, muito menos se uma dessas inconsciências tiver reduzida a metade, ou a metade disso ainda, e se a outra, ou o 'outro' – que dessa não faz parte, for inocente, pelo menos até que as partes todas da Drica, que por natureza nunca foi bem inteira de si própria, se juntem de novo e mintam ou desmintam disto mesmo?

Sem comentários: